Debruçada na varanda, ele me abraçava, me envolvendo. Não éramos ninguém menos que amantes errantes. Saboreando a chuva, sentindo toda sua presença em mim, comecei a ter um desejo imenso: o de cozinhar para ele! Não sou uma exímia na cozinha, mas achei que pudesse fazer algo simples e saboroso.
Mexendo lentamente o spaghetti para não quebrar, a fumaça de água fervente foi subindo pelo meu colo, se arrastando acima, pelo meu pescoço, atingindo a lateral do rosto, se emaranhando, já morna, nos meus cabelos presos. O silêncio era comunal de uma cozinha, apenas se ouvia o tilintar de tampas de panela. O macarrão escoando a fervura da água ralo abaixo como se fosse queimando garganta adentro, me impedindo de falar qualquer coisa sentimental que pudesse nos levar à um passado remoto. O macarrão al dente depois de despejado na travessa recebeu o molho. Devagar passeando pelo seu corpo esguio, transformando em vermelho o que era branco. Paixão?
Então eu o vi ali, sentado na mesa, com aquele sorrisinho meio de lado, os olhos brilhando, fixos em mim. Apenas o servi, não o fitei. Mas de soslaio segui seus movimentos. Pegou rapidamente o garfo e se pôs a comer. Depois de enrolar os fios loiro-ruivos em seu garfo, levou-o lentamente em direção à boca como se fosse um gesto sagrado. Abriu a boca, não muito mas o suficiente. Alguns fios se soltaram do garfo e bateram na parte inferior de seus lábios. Ele piscou forte assim que sentiu a quentura. Depois rapidamente o spaghetti foi inserido para o inteiror de sua boca e um gemido de satisfação saiu. Foi alto e curto e me fez sentir orgulho de mim mesma. Um raio forte ecoou no céu e nossos suspiros se tornaram curtos por dois segundos.
Servi o vinho que se esparramava pela taça assim como a chuva se esparramava pelas terras do mundo naquele momento. O líquido ia acariciando as curvas da taça até cansar de balançar pelas suas extremidades. Algumas pequenas bolhinhas se formaram. Sem formalismos, ele pegou a taça (como quem pega um copo de cerveja) e tomou dois goles grandes. Senti que o vinho desceu sua garganta abaixo, rasgando, mas de forma sútil. Assim como eu o tratava muitas vezes.
Pratos sujos, talheres cruzados, camisa branca manchada com o sangue macarrônico. Os botões foram abertos lentamente, um a um. Passos errantes, bocas desencontradas, e a luz apagou-se.
Amanheceu. Ainda chovia mas percebi que ele havia ido embora. Vi que bebeu uns goles de café do dia anterior e saiu. Fiquei imaginando o que pensaria sua mulher ao ver a mancha de molho em sua camisa. Mas lá fora, já com o sol saindo, ele tiraria a camisa, jogando-a pra um mendigo. Da mala, tiraria uma camiseta limpinha, daquelas que se usa em almoços familiares de domingo, e vestiria. Ao descer do ponto de ônibus perto do apartamento dela, compraria flores. Aquelas que eu nunca cheguei a receber. Arrumaria o cabelo, tocaria a campainha. Sorriria ao ver seus olhos, tão limpos quanto o céu azul daquela manhã.
Cau, bonito texto.
ResponderExcluiràs vezes, eu acho que perdi e nunca mais vou recuperar um pouco dessa coisa do belo do cotidiano.
ResponderExcluirOs amantes sem dinheiro
ResponderExcluirTinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.
Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.
Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.
Eugénio de Andrade
* * *
olá moça,
gosto muito desse seu escrito, cheio de sutilezas.
ele dança belamente com o poema do Eugênio de Andrade.
creio, seguindo minha intuiçãopisciana, que você iria gostar da poesia do Eugênio de Andrade que é tão sutil, tão cheia de miudezas, algo para ser lido em voz baixa proximo aos jacarandás . . .
Patrícia