quinta-feira, 29 de abril de 2010

Paciência.

Eu não tenho paciência de esperar passar uma chuva forte por mais de 10 minutos. Muitas das vezes em que isso ocorreu, acabei andando, impaciente e feliz, recebendo as gotículas gordas de água poluída. Hoje consegui superar um pouco essa falta de paciência. Parei em um lugar seco para poder escrever este texto e relembrar, com todos os detalhes, o dia em que lavei minha alma.

O dia em que lavei minha alma.

Aconteceu ano passado, no chuvoso mês de setembro. Já estava morando em Marília e era um daqueles famosos finais de semana solitários. Resolvi ir ao cineclube, num pacato final de domingo, ver não sei que filme. Estava calor. Escolhi logo um lugar abaixo do ventilador de teto para que pudesse me refrescar mas depois pareceu inútil, o calor vencia qualquer tentativa de refresco. O filme, que deveria ser muito interessante, passou tão rápido que nem vi a hora correr. Ao chegar na porta pra ir embora, vi um amontoado de pessoas. Elas cobriam minha visão e não pude entender o que se passava lá fora. Como teria que sair mesmo, resolvi passar pelas pessoas pra sair. Então fui tomada de choque e brequei, assim como um carro freia bruscamente rangendo os pneus.

Chovia torrencialmente de forma que era impossível ver o outro lado da rua pois tudo estva coberto por um manto molhado. O chão do asfalto recebia, como fortes chicotadas, os pingos pesados que caíam muito rápido. A luz que saía dos postes ficava embaçada e os carros passavam devagar. Não se avistava uma alma na rua. O barulho da chuva soava como o som de uma orquestra que toca agressivamente os instrumentos. O ar tinha aquele cheiro de grama molhada, que entra pelas narinas e te faz delirar. Um ventinho suave e gelado soprava no rosto de preocupação de todos aqueles que esperavam uma trégua da chuva pra poder sair. Eu também esperava, mas estava ficando impaciente.

Estava carregando três coisas nas mãos. Dobrei a programação do cineclube e coloquei dentro da calça. Discretamente guardei o celular no decote da blusa e apertei bem forte as chaves de casa na mão esquerda. Joguei alguns fios de cabelo pra trás, ergui um pouco a barra da calça. Usava chinelos. Respirei bem fundo. Olhei pra todos envolta. Ainda permaneciam preocupados e a feição de curiosidade e mais preocupação apareceram em seus rostos quando viram meu preparatório. Respirei fundo novamente, olhei pra cima e vi a chuva. Esbocei um leve sorriso, fechei levemente os olhos e então saltei pra calçada. Escutei os ruídos de surpresa e indgnação atrás de mim. Mas continuei rindo e andando. O processo de lavagem estava a começar. Olhei pras pessoas com cara de criança levada, como se estivesse dando um “tchau, vocês não sabem o que estão perdendo” e atravessei a rua. As pessoas que se abrigavam embaixo de toldos de estabelecimentos fechados olhavam com surpresa. E assim fui indo, a caminho pra casa. A caminhada não deveria durar mais de 10 minutos.

A chuva molhava meus cabelos e minha roupa. Meu pé estava completamente encharcado. As gotas não cansavam de escorregar em mim. Então, parei, fechei os olhos e senti minha alma sendo lavada. Sensação única e necessária pra quando se pensa que tudo está perdido.

Texto escrito em 16 de Março de 2010.

chuva (12)

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chuva

12 comentários:

  1. Muito bom!!

    Estava aqui eu na internet e resovi ler o seu blog e me deparo com um texto desses...Você não imagina como o seu texto me acalmou! Fui lendo e te imaginando...e...senti leveza...Ufaa!! Comecei a imaginar as gotas caindo em mim também e me lembrei da última vez que tomei uma forte chuva assim...Faz bastante tempo e foi muito especial, depois eu te conto!

    Você soube descrever bem e me deixou leve! Muito obrigada! ;)

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  2. Fevereiro de 2009, durante uma das minhas primeiras reunioes do pet começou uma chuva bruta. Acabou a reuniao mas nao a chuva. Sai andando e me molhando, fui ate o DA, e me escondi ali, mesmo molhado. Sequei os oculos na camiseta molhada, coloquei-os em cima da mochila, em um canto seco do chão. Pulei a muretinha e deixei o corpo cair na grama, e senti a chuva cair queimando no meu rosto.
    Minha camiseta do alf esta suja até hoje, a mancha de terra não sai. foda-se.
    Mas uma chuva pra limpar tanta alma não basta.
    Ai ai.
    Belo texto, me fez pensar.
    Beijos.

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  3. remetendo ao texto anterior, eis outro exemplo de simplicidade.

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  4. " Olhei pra todos envolta"


    Olhei p'ra todos em volta
    ou, melhor:
    Olhei para todos em volta

    Este texto,é a simplicidade ao correr da pena. Muito bem.
    Bjs

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  5. Olá gostaria de convidá-lo a conhecer meu trabalho através do blog Ecos do Teleco Teço (WWW.ECOSDOTELECOTECO.BLOGSPOT.COM) . Grande abraço e sucesso com sua proposta !! Axé

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  6. nossa, demais! adorei!

    abraço aço

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  7. Primeiramente vou comentar sobre seu post. Achei fantástico,por vários motivos. O primeiro que meu maior defeito é a impaciência,acho a chuva fascinante principalmente as de Marília que são menos ácidas do que as de SP. Também passei por um epsódio semelhante em que fiz questão de me molhar em uma chuva torrencial. E as pessoas quando me viram molhado ao invés de perguntarem o porque eu estava feliz depois de ter se embrenhado na tempestade,me deram bronca dizendo que eu ia contrair um baita resfriado.São poucos que conseguem apreciar pequenos momentos,que para outros são transtornos.O que acho uma pena.Mudando de assunto, só agora que vi que comentou no meu blog. Vou aceitar sua sugestão e logo lerei Minha querida Sputnik(o título muito me agrada).Não sou mais de Marília, me formei sim na Unesp. Agora minha morada voltou a ser SP.

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  8. Gostei muito do seu texto. Bom, ás vezes é tão bom poder lavar a alma...
    Vou ficar também te seguindo, sim?
    Passa mais vezes lá no Banzai.
    Ternuras

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  9. Desculpa, mas dei mais uma olhadela, e não é que descobri que você também é fã de Murakami!
    Por favor espreita a etiqueta que tenho sobre ele e vamos trocar impressões, tá?
    Mais beijos
    Margarida

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  10. E ainda dizem que a natureza volta-se contra os humanos malvados que poluem o mundo. Se alguém observar o pôr-do-sol em qualquer cidade grande, verá que isso não faz o menor sentido, pela beleza orgânica que acontece no meio da selvageria de pedras.

    Aconteceu uma vez de ter que ir para a USP logo após uma chuva dessas. Obviamente não consegui chegar (de carro). Parei ele na praça do Por do Sol e fui a pé. Foi maravilhoso ver todos os carros parados para todas as direções, o céu começando a ficar laranja, o chão molhado e a sensação de que a alma da cidade tinha sido lavada...

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Comentários.

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