segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Ubachuva - parte 2

Para relembrar, aqui está a Parte 1.

 A caminho de Paraty avistamos, em plaquinhas ao longo da estrada, um restaurante chamado Cantinho da Titia. As plaquinhas anunciavam comida caseira, cachaça caseira, doces caseiros e café quentinho. Ficamos curiosos mas um pouco desconfiados e passamos reto.

Chegando em Paraty, uma confusão. Tudo cheio e tudo chuvoso e a visão de dentro do carro era desanimadora.

 

Mas mesmo assim, resolvemos dar uma chance pra Paraty e dar mais uma volta. Só que a chuva continuava e engrossava cada vez mais. A visão que me ficou na cabeça foi a clichê Veneza brasileira: o rio invadindo a cidade.

 

Como estávamos já desanimados e não vimos nada que nos fizesse realmente ficar ali, pegamos a estrada de volta. Aí a fome foi chegando e com aquele “friozinho” e aquela chuvinha, deu vontade de uma comida bem caseira e bem feitinha.

Então, ao longo da estrada, avistamos mais propagandas daquele tal de Cantinho da Titia: “Comida caseira”, “Café da tia” entre outras atrações que eu considerei como imperdíveis!

Entramos com o carro. Ali no fundo avistamos uma casinha bem simples onde, na frente, havia uma varanda enorme cheia de mesas. Fomos recepcionados por milhares de beija-flores que rondavam aqueles potinhos de água com açúcar que ficam pendurados. Uma cena encantadora que iluminou meu dia chuvoso.

Fomos muito bem recebidos pelas tias simpáticas. Pedimos logo de cara o prato que vem galinha cozida e a fome foi só aumentando.

Enquanto esperava o prato chegar, dei uma volta pela propriedade e encontrei na lateral da casa, as galinhas e galos que virariam comida. Do outro lado da casa, mais ao fundo, uma pequena horta. As mesas ficavam num espaço grande que mais parecia um quintalzão. Nesse quintal tinha um forno a lenha. Que delícia! E gatinhos passeavam pelo local e ás vezes paravam pra fitar os beija-flores, o que era difícil pois esses passarinhos são muito rápidos.

Quando meu maravilhoso suco de laranja chegou, sentei na mesa e me deparei com duas folhas escritas pelas tias. As transcrevo aqui:

 

“Carta de Agradecimento

Esta é uma carta de agradecimento aos fregueses do Cantinho da Titia, aqueles que nos deram a primeira oportunidade. (…) Pessoas que não se importaram com a simplicidade do nosso cantinho.

Minha irmã mais velha começou o Cantinho da Titia. Ela vendia broa de fubá nas margens da rodovia. Depois nos mudamos pro lado de cá, mas funcionávamos precariamente porque não havia energia. As coisas melhoraram pra nós depois que a luz chegou. Então unimos a vontade de trabalhar com a ajuda do governo e de vocês, que nos dão a melhor parte.

(…)

Esta não é uma história de grandes sucessos e feitos, mas de luta por uma vida com dignidade. A vida agora não é mais tão penosa. Não dependemos tanto da lavoura, não precisamos mais explorar a mata. Plantas, animais e árvores estão sendo preservados. Esta mata é para nós, extensão do nosso quintal. Estamos vivendo em harmonia com a natureza.

Escrevi estar carta não para apelar, mas para agradecer a vocês. Eu não sei muito bem, mas acho que isso é distribuição de renda. O governo nos deu a vara e nós aprendemos a pescar vocês que nos ajudam a termos uma vida mais digna.

Muito obrigada

     assinado a faladeira e todas as titias

            Zenaide, Gercina e Maria”

 

 

 

“Querido freguês, 

Para nós do Cantinho da Titia, é um privilégio a sua presença aqui. Nós somos uma família e trabalhamos em três irmãs, duas cozinheiras e uma faladeira.

Nossos pais chegaram aqui em 1957, antes da construção da Rio-Santos. Junto com mais 54 famílias, migraram do Espírito Santo e de Minas Gerais. Minha mãe, hoje com 79 anos, conta como era a vida.

Aqui era uma terra desabitada e andava-se horas dentro da mata para se chegar a Paraty. Era comum esbarrar com uma onça atacando galinhas. Os jacús, pássaro grande e barulhento, comiam no quintal com as galinhas. As pacas, tatus, quatis, tamanduás e codornas do mato eram tão comuns que qualquer criança sabia que bicho era. Hoje se caminha horas dentro da mata para ver alguns bichos.

Quase não trabalha-se mais na roça. Mudamos os nossos hábitos, plantamos o suficiente e preservamos mais a natureza porque as pessoas que vem aqui gostam da mata. Não derrubamos mais as árvores e hoje vivemos do que vendemos aqui. Por isso você também está contribuindo para a preservação da natureza da região mesmo sem perceber.

(…)

Aqui é uma reserva federal criada em 1972. Vivemos em um verdadeiro paraíso, privilégio de poucos no mundo. Nos sentimos como parte da fauna e flora brasileira, a protegemos e somos protegidos por ela. Esta mata que você está vendo está praticamente intacta. No nosso sítio não mudou muita coisa desde que nossos pais chegaram aqui.  Quando alguém me pergunta se eu planto alguma coisa, eu digo que não, pois a natureza já plantou há muito tempo. Eu me sinto apenas uma guardiã para as futuras gerações.

    Obrigada pela sua preferência.”

 

Achei boa a idéia de escrever isso e deixar em cima das mesas para que todos lessem. Nota-se que foi feito com simplicidade mas com intuito de mostrar uma história digna. Percebe-se o esforço e o carinho que essa família coloca no seu trabalho.

E isso foi muito bem percebido pela comida que acabara de chegar. Saindo fumacinha, impregnando o ar com aquele cheirinho de comida fresca e bem feitinha. A comida estava uma delícia!

De barriga cheia, ainda ficamos mais tempo conversando com as tias. Conhecemos seus sobrinhos que estavam por lá ajudando. Umas gracinhas, crianças lindas. Não é trabalho infantil, mas sim férias na casa da titia. Ajudam com vontade. Certamente, se não quisessem não seriam forçados. Simpáticos e prestativos, anotaram os pedidos, sorriram, conversaram.

Depois as tias nos mostraram os doces, ofereceram o café a lenha, indicaram cachaças.  Meu pai, apreciador de bebidas que é, se interessou. A tia disse que a produção daquela cachaça fica ali perto, falou como se chega lá. Não pensamos duas vezes: compramos uns docinhos de doce de leite, agradecemos a hospitalidade e partimos.

Seguindo a estrada, entramos numa estradinha de terra que nos levou a dentro pela mata até chegarmos num sítio. A chuva havia dado uma trégua e o sol ensaiava tímido uns poucos raios.

Ali, num sítio chamado Cabral, é produzida a cachaça Coqueiro, que dizem ser a legítima pinga de Paraty. Sua produção mantem os moldes artesanais de se fazer cachaça. “Segue rigorosos padrões de higiene e controle em todas as etapas de produção, desde a colheita e moagem da cana-de-açúcar, a decantação e filtragem do caldo de cana, a preparação do mosto, a fermentação e a alambicada, aproveitando-se o chamado "coração" da destilação, ou seja, desprezando-se o produto inicial (a chamada "cabeça") e o final (o chamado "rabo", "cauda" ou "água-fraca").” ¹

Logo que chegamos, já nos convidaram pra mostrar o processo de produção.

A moagem da cana.

Depois da moagem, a cana é decantada e filtrada e em seguida adiciona-se no caldo da cana nutrientes naturais.

Em seguida o caldo é fermentado - o legal é que não é usado nenhum aditivo químico no processo. Quando atinge certo ponto, o caldo está pronto para ser enfim destilado.

A cachaça é engarrafada e aí é só tomar!

Há também a fabricação de cachaças curtidas em ingredientes especiais como maracujá, laranja, coco, etc.

Depois de termos visto todo o processo, chegou a hora da degustação. Conversa vai, conversa vem e acabamos levando garrafinhas de pinga pra todos os parentes!

Eu nunca tinha visto um processo de destilados e achei interessante compartilhar isso aqui. Acabei achando na internet o site da cachaçaria.

Cachaça Coqueiro                                                                                                 

No site, está a história dessa marca. Uma história que carrega o segredo da produção de muitas gerações fazendo assim, algo tradicional.

De barriga cheia e pinga tomada, novamente, seguimos viagem. Logo que entramos no carro, começou a chover. Dei risada. Aquela chuva estava querendo me dizer alguma coisa. Algo que só fui descobrir no fim da viagem.

¹ http://pt.wikipedia.org/wiki/Cacha%C3%A7a_Coqueiro

(Aguardem o Ubachuva – parte 3!)

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