sexta-feira, 3 de abril de 2009

Uma carta para a minha nêga.

Marília, 3 de abril de 2009.

Lu,

Tenho quase certeza de que as coisas aí estão muito bem. Imagino que você esteja num lugar maravilhoso.

Aqui está tudo muito bem apesar de tudo o que aconteceu. Acho que você deve ter visto por aí uma tia da mãe e o irmão do pai, que acabou de chegar. Acredito que você os tenha recebido bem.

Daqui uns dias vai fazer quatro meses que você foi para o seu eterno Ceará, pra sua eterna Aparecida. Ainda guardo a santinha que você me trouxe de lá. É uma lembrança muito significativa pra mim. Eu deixo a lembrancinha junto com as minhas coisinhas da escrivaninha, sabe? Mas ás vezes, na hora de dormir, eu pego ela e deixo no móvel perto da cama. Parece que durmo melhor assim!

Você já deve estar sabendo. Depois que você foi, lá em casa ficou uma bagunça! Tudo de pernas pro ar. A mãe quase enlouqueceu. Você imagina, né? Mas é claro que eu ajudei ela. Você sabe que eu sei fazer as coisas de casa mas não fazia porque tinha preguiça. Mas depois que você foi eu sabia que eu tinha que ajudar a mãe e ajudei. Vai ficar orgulhosa de mim, não vai!? Ah, o pai você já sabe! Só ficou falando, botar a mão na massa mesmo foi uma vez ou outra. Até imaginei você aí fazendo cara feia pra ele. Ai, mas você ia dar risada mesmo era da gente botando ele pra trabalhar! Nossa, como você ia rir, Lu!

Sinto falta da sua risada também. E de você falando com os baldes, com a máquina de lavar, com a vassoura. Se você tava na cozinha dava pra te ouvir lá do quarto. Quantas vezes já não fechei a porta pra tentar estudar. E você ainda me aparecia lá dentro falando e falando e guardando as meias na gaveta das calcinhas. Como já fiquei brava com isso. Você era tão destraída… Depois de um tempo eu deixei pra lá. Deixa ela colocar do jeito dela, eu pensava, que depois eu arrumo.

Afinal, nada tinha eu que reclamar de você. Sabe, quando as pessoas vão embora, a gente começa a pensar em tudo o que ela foi e representou pra gente, né!? E sabe o que eu pensei de você? Que sua honestidade e simplicidade foram de uma importância imensa na minha vida.  Você não imagina o quanto sua simplicidade é linda. Bom, você deve estar se perguntando o que seria “simplicidade” e eu te respondo: simplicidade é você.

Agora eu to longe de casa, Lu. Mas não fica aflita, não. Tô aqui pra estudar, Lu. Pode parecer um absurdo pra você mas eu te juro que é uma escola boa. Te juro que vale a pena e te juro que a mãe deixou! Lu, ela é muito corajosa, você não acha?! Queria saber o que você ia achar dessa minha loucura de mudar de cidade pra estudar. Com certeza ia dar um tapinha na minha bunda e me chamar de danada. Ia falar que eu era saidera mesmo.

Mas olha só, aqui eu mesma tenho que lavar minha louça, fazer minha comida, varrer a casa. Lavo até o banheiro! Tenho que fazer minhas compras, dormir cedo e além de tudo isso, estudar muito. Imagino que agora você esteja impressionada e espero que isso seja uma forma de demonstrar orgulho por mim.

Muito do que você me ensinou eu uso aqui. Todos os anos que fiquei te observando trabalhar eu faço igual na minha nova casa. Mas o que mais tomo de exemplo de você é a honestidade e a simplicidade. E o amor, claro. Sei que seu coração é forte. Tão forte que não aguentou. Parou de bater porque se fosse pra bater mais, bateria pra sempre.

O sempre agora é onde você está. Isso me deixa muito feliz mas também me dá um aperto. Você não sabe o quanto faz falta. Queria que você estivesse lá em São Paulo com a mãe pra ajudar ela. Ela conseguiu uma moça pra ajudar ela, não fique com ciúmes. A mãe disse que ela é muito devagar. Mais que você! Mas você sabe, né? Você sabe que nada se compara a você. Porque você era integrante da família. Amiga da mãe, companheira do pai e minha segunda mãe. Agora a gente tá aqui, se virando sem você.

Sabia que a Dedé tá cada vez mais barriguda?! E ela tá sempre bem humorada, que nem você. Faz tempo que não a vejo pois estou aqui em Marília agora. Mas depois eu vou perguntar pra mãe se ela tem visto a Dedé passeando com os cachorrinhos da senhora do 82 lá em baixo. A Beti conseguiu emprego numa fábrica e tá ganhando bem! Bom, sobre suas filhas a senhora deve saber. Acredito que elas oram sempre por você. Não vou comentar nada sobre o Zé, isso você conversa com a mãe. Vocês é que ficavam falando dele e eu não sei muito o que dizer sobre essaa coisas feias que ela fazia e continua fazendo. Ai, que coisa!

Queria saber se você é um anjo agora. Queria saber o que você faz aí. Você consegue me ver aqui em baixo? E se você está perto do todo poderoso, pergunta pra ele: por quê? Pergunta, Lu. Não precisa ter vergonha, ele vai te responder. Eu sei que você também quer saber o por que. Eu sei que é difícil pra nós. Mas tá tudo bem. Eu confio nesse mundo espiritual. Sei que você está aí pra atingir um estágio indescritível que nós seres humanos não conseguimos atingir. Por isso, pra te ajudar, eu faço muitas oraçõe e oferendas. Sempre agradeço por você existir.

Sinto muito a sua falta. É uma saudade que bate forte no peito, mas as lembranças são ótimas. E isso é tão bom…

Mais uma vez, e diretamente através dessa carta, agradeço muito por tudo que você fez por mim e pela nossa família. Te admiro, por ter sustentado sua família praticamente sozinha. A senhora conseguiu deixar uma casa pra eles! Te admiro por você ter sido quem você sempre foi e que em mim deixa um buraco no peito mas que ao mesmo tempo deixa um amor imenso, uma consideração sem igual.

Com amor e muitas saudades,

          da sua nêga

                        Carla

 

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2 comentários:

  1. Carlinha
    De vez em nunca a gente coloca umas cores por aqui

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  2. Tão bela essa carta-oraçãozinha!. Tão cheias das miudezas que se colhem com a visitação desses "anjos" que cruzam nossa finitude, umas pessoas que evocam uma saudade de um lugar que não sei nomear, mas basta olhar para elas e a gente já sabe que elas iram marcar nossa vida para sempre. e quando a gente menos espera, lá vão eles voando,leves como a palavra adeus.

    Patrícia


    ***

    O Outro sou Eu

    "Quando eu não tinha concentrado a fagulha do seu sorriso e a duração do teu rosto não tinha chegado até minha terra, então os dias eram iguais e os acontecimentos inabitáveis: cada palavra e cada gesto carregavam um horror de eternidade e esquecimento. Eu não podia morrer, pois ainda era um individuo, e indivíduos não sabem evocar. Agora que sabemos que a visitação do outro pode desmanchar uma morte e roubar um fim, podemos meditar a aberração que antecipou a nossa vinda; interromper o pesadelo que nos precedeu. Uma palavra à altura do ferimento do tempo é um homem-evocação: sim, a ternura do finito nos roubará o equivoco do sempre."

    Juliano Garcia Pessanha

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Comentários.

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